mercredi 9 novembre 2011

Singularidades da nossa História

Há duzentos anos, a 27 de Setembro de 1810, o exército francês, pela terceira vez invasor, agora sob o comando de Masséna, era derrotado na batalha do Buçaco pelas forças aliadas anglo-portuguesas, comandadas por Wellesley. Era o princípio do fim das invasões francesas, iniciadas em Novembro de 1807, em território nacional. Mas apesar da derrota dos exércitos napoleónicos, a situação de Portugal manteve-se por longo tempo extremamente precária. Enquanto o continente, devastado e exangue, permanecia sob o jugo dos nossos “aliados” britânicos e se debatia com uma grave crise política, económica e financeira, a família real e a corte, dilapidando sem contar o erário público, continuavam no Brasil, para onde tinham fugido.
Recorde-se que, contrariamente aos outros monarcas europeus que Napoleão pusera em perigo, a família real portuguesa se refugiou numa das suas colónias, num continente afastado, o que significava uma longa e imprevisível travessia do Atlântico. Recorde-se ainda que com a família real, a corte, o governo, os funcionários, respectivos familiares e outros – foram cerca de 10.000 os que em 1807 abandonaram o país – seguiu para o Rio de Janeiro o tesouro real, milhares de documentos, livros e toda a sorte de objectos valiosos. Tudo sob escolta britânica, já que a Inglaterra era favorável a esta opção de que veio a tirar grande proveito.

Convém salientar que esta opção americana tinha já raízes antigas e defensores eminentes. O Padre António Vieira, no reinado de D. João IV, sonhara fazer do Brasil a sede do Quinto Império, e esta ideia de assim deslocar o centro do reino, menosprezando o velho Portugal – a mais antiga nação europeia – permaneceu viva, sendo depois retomada no tempo de D. João V e de novo pouco antes de o futuro D. João VI assumir a regência do reino. Com efeito, em 1798, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que viria a “dirigir o novo governo de D. João no Rio”, num discurso proferido na corte, disse “que «os domínios na Europa» já não eram «a capital e centro do Império Português». Reduzido a si mesmo, concluía, Portugal em breve seria «uma província de Espanha».” [1]

As singularidades da nossa História não se limitaram contudo à fuga da corte para o Brasil. Este facto significou também um desenvolvimento e um prestígio consideráveis para a colónia privilegiada, a ponto de, em 1815, ser equiparada à metrópole, com a publicação de uma Carta de Lei instituindo o “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”. Mais, em 1817, é para o Brasil que viaja D. Leopoldina, arquiduquesa da Áustria, filha de Francisco I, para aí confirmar a cerimónia do seu casamento com D. Pedro, herdeiro do trono português. É ainda no Rio que terá lugar a aclamação de D. João VI, em 1818, dois anos após a morte de sua mãe, D. Maria I. Finalmente, pouco depois de, a 4 de Julho de 1821, D. João VI, embora contrariado, se ter visto obrigado pelas circunstâncias a regressar a Portugal, é o próprio herdeiro do trono português, D. Pedro, que proclama a Independência do Brasil, a 7 de Setembro de 1822, sendo pouco depois aclamado imperador, a 12 de Outubro. Mas estas singularidades da nossa relação histórica com o Brasil ainda não se esgotaram. Os saudosos da vastidão, do prestígio e das riquezas fáceis do Império perdido descobriram agora que a língua portuguesa é o último continente a explorar e de novo se voltam para o Brasil onde julgam ter encontrado a solução. Assim, com o Acordo Ortográfico de 1990 – que tem vindo a ser defendido e insidiosamente imposto por intelectuais, políticos e media portugueses, que se comportam como “os donos da língua” e se mantêm surdos aos protestos dos seus mais conceituados concidadãos - Portugal, que levou a sua língua a todo o planeta, opta por abdicar da sua própria ortografia, para adoptar, no essencial, a ortografia brasileira. A justificação apresentada para tal é a necessidade imperiosa de envolver o Brasil na “internacionalização” do português, o que significa, de facto, promover a norma brasileira, aliás marcada por arcaísmos que na sua evolução o português europeu abandonou. Deste modo, por incúria, ignorância, preguiça e falta do sentido da própria dignidade, estamos prestes a entregar ao Brasil o destino da nossa língua, o português de Portugal, com todas as consequências nefastas, facilmente previsíveis, que daí advirão. Se o país continuar a não reagir e se a conspiração do silêncio e a auto-censura instaurada nos media continuar a impedir a expressão das vozes discordantes e o debate aberto e sério que se impõe, seremos mais uma vez “o único país europeu” nesta ridícula e suicida situação. Abro aqui um pequeno parêntese para recordar que o português, uma das línguas românicas da Europa, derivadas do latim que o Império Romano trouxe às regiões que estiveram sob o seu domínio, surgiu, desenvolveu-se e cresceu acompanhando a história da formação do próprio reino de Portugal, cujo território se estendeu até ao Algarve aquando da conquista de Faro, Albufeira, Porches e Silves, em 1249, por D. Afonso III. “A individualidade da língua portuguesa começou a desenhar-se no domínio do léxico e pode remeter-se para uma data próxima do século VI. (…) Os dois primeiros textos escritos em português – a «Notícia de Torto» e o «Testamento» de D. Afonso II – datam de 1214-1216.”[2]

A partir da conquista de Ceuta, em 1415, Portugal sai do espaço europeu e lança-se na longa e arrojada epopeia dos Descobrimentos, que espalhará o português pelos vários continentes. A nossa língua, “em finais do século XVI e durante o século XVII, além de ser falada na América (Brasil), era também utilizada como língua geral do litoral africano e como língua franca (indo-português e malaio-português conforme as regiões) nos portos da Índia e do sudeste da Ásia. Europeus e asiáticos comunicavam em português em extensas regiões da Índia que incluíam Goa, Damão, Diu e Ceilão, em Malaca, nas ilhas de Samatra e Java (antiga Batávia) e na ilha de Timor. No Japão, Tailândia (antigo Sião) e na China também a língua portuguesa serviu nas relações políticas, comerciais e religiosas.”[3]

Desta extraordinária aventura resultou que a língua portuguesa ainda hoje perdura, como língua materna, em Portugal e no Brasil e como língua oficial em Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Timor-Leste, os países da CPLP, e ainda em Macau. Falta acrescentar as importantes comunidades de emigrantes disseminadas pelo vasto mundo e algumas bolsas de pequenos grupos sociais que resistem, como se verifica em Goa, por exemplo.

Em todos estes países e regiões, com excepção do Brasil, a norma padrão adoptada como referência foi sempre a do português europeu, estando em vigor a ortografia consagrada pelo Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 1945 – que o Brasil não respeitou – mais as pequenas alterações de 1973. O novo Acordo e as negociações conduzidas pelos seus defensores estão em vias de subverter totalmente esta situação que tem raízes históricas evidentes e irrefutáveis. De qualquer modo, somos todos povos soberanos e independentes e cabe a cada um de nós escolher o seu destino.

Vale a pena evocar algumas declarações dos defensores do novo Acordo Ortográfico, por recordarem as dos conselheiros da corte referenciados acima, no terceiro parágrafo, defendendo a transferência do governo do reino para o Brasil.

Começo pelo actual Embaixador português em França, antigo embaixador de Portugal em Brasília: «Seixas da Costa diz que a língua portuguesa não tem futuro “sem uma relação frutuosa entre Portugal e Brasil e sem uma política de articulação entre os dois países”. (…) Esta deve ser “uma acção conjunta em que todos nós temos que nos empenhar para a projecção do português”, diz o embaixador, que acrescenta que o Acordo Ortográfico serve para “diminuir as diferenças para uma acção conjunta e o empenhamento conjunto dos países”.» [4]

O anterior Ministro da Cultura, Pinto Ribeiro, em entrevista ao ”Público” (04/02/2009), como justificação para o que chama “universalização ortográfica” declarou: “Nós afirmamo-nos enquanto identidade e enquanto povo através da língua que falamos e da expansão que demos a essa língua. Neste momento, o número de falantes do português andará pelos 230, 240, 250 milhões. Mas desses 250 milhões, 200 milhões são brasileiros. E eles eram apenas 70 milhões em 1960. De 1960 para 2008 triplicaram, e isso significa fazer 130 milhões de falantes do português, mais do que nós fizemos em todo o nosso passado.”

A mesma individualidade teria dito (“Público”, 19.03.2008) que a inoperância da Academia das Ciências, ”nunca permitiu a fixação da língua portuguesa num dicionário”, contrariamente ao que aconteceu em França ou em Espanha. “Não tendo Portugal criado um estudo normativo, vemo-nos forçados a criar leis.”

Rui Tavares disse no “Público” de 9/6/2008: “Porque é a estratégia correcta, e tão simples, que se resume numa frase: consiste em envolver o Brasil num esforço colectivo de promoção da língua, em que cada país lusófono conta institucionalmente o mesmo.”

Para não me alongar mais nas citações, recordo apenas Carlos Reis, num texto intitulado “Rápido no gatilho” (“Público, 30/05/2008), em que, falando do seu “optimismo moderado quanto ao potencial do português, no que à sua afirmação internacional diz respeito”, rejeita o “triunfalismo” baseado nos “milhões de falantes” e acrescenta: “Tão excessivo como aquele triunfalismo só conheço o bafiento nacionalismo ortográfico dos derradeiros gauleses que gostariam de manter o português encerrado na aldeia remota em que ele nasceu.”

Em conclusão, no século XIX, como vimos, Portugal esteve em risco de desaparecer, mas soube resistir e sobreviveu, mesmo tendo perdido o Brasil. Está agora nas nossas mãos – de cada um de nós – impor a opção que nos dignifica e respeita a nossa identidade, a nossa História e a língua que herdámos dos antepassados e temos a obrigação inalienável de transmitir, na sua integridade, e se possível mais rica e mais bela, aos nossos descendentes próximos e futuros: recusemos por todos os meios este vergonhoso Acordo Ortográfico!

Maria José Abranches

Professora aposentada do Ensino Secundário (Português e Francês)

Ex-Leitora na Universidade de Paris III



[1] Patrick Wilcken, “Império à deriva – a corte portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821”, Civilização Editora, 11ª edição, Fev. 2008

[2] “Gramática da Língua Portuguesa”, Maria Helena Mira Mateus e outras, Ed. Caminho, 1989

[3] ibidem

[4] in “Público”, 16/03/ 2010