Carta de Maria José Abranches Gonçalves dos Santos aos membros do governo
Ex.mos Senhores
Primeiro-Ministro do XIX Governo Constitucional
Ministro dos Negócios Estrangeiros
Ministro da Educação, do Ensino Superior e da Ciência
Lagos, 27 de Junho de 2011
Começo por apresentar os meus mais sinceros votos de que, com o actual governo, Portugal encontre definitivamente o seu próprio caminho e o lugar que lhe cabe entre as demais nações democráticas.
Dada a gravidade e o perigo da situação em que a nossa língua se encontra, devido à adopção do Acordo Ortográfico de 1990, cuja aplicação está aceleradamente em curso – desde a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 9 de Dezembro de 2010, atrevo-me, na simples qualidade de cidadã portuguesa e de professora de Português (agora aposentada), a dirigir-me a quem tem responsabilidade e poder para intervir.
Porque as políticas relativas à defesa, ensino e difusão da nossa língua – português de Portugal – estão também a cargo dos dois Ministros acima referidos, a eles igualmente me dirijo, pedindo a V.ª Exc.ª, Senhor Primeiro-Ministro, o favor de lhes transmitir a minha missiva.
Sou desde o início contra este Acordo pretensamente “uniformizador”, que conheço bem, assim como muitos dos pareceres e opiniões de especialistas e intelectuais prestigiados e credíveis que contra ele se têm pronunciado.
Conheço também as várias fases desta já velha guerra entre o Brasil e Portugal em torno da ortografia da língua portuguesa, que data concretamente de 1907 (e não de 1911, como se diz no Anexo II do Acordo), quando a Academia Brasileira de Letras efectuou unilateralmente uma reforma ortográfica tendente à simplificação da ortografia, aproximando-a da “fonética”.
Desde então, todas as tentativas de aproximação entre as duas ortografias têm sido sistematicamente desrespeitadas pelos brasileiros, que consideram – e bem – que a sua soberania passa pelo direito de decidir do modo como devem escrever a sua língua. Foi o que aconteceu inclusive com o Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 1945, que tem estado em vigor entre nós e em todos os restantes países que agora integram a CPLP.
Aliás, penso que não tem importância nenhuma, como não tem tido até agora, que existam diferenças ortográficas entre as duas normas da língua portuguesa. É até vantajosa essa “fronteira visual” que ajuda a distingui-las, já que os menos instruídos poderão não ser sensíveis às diferenças sintácticas e vocabulares que as caracterizam - essas sim determinantes - o que, com as novas tecnologias, pode ter consequências desagregadoras incalculáveis. Basta salientar que em certas funcionalidades do Google, por exemplo, já só é proposta a opção “português.br”. Se é a isto que se chama promover o prestígio da língua portuguesa…?!
Gostava ainda de recordar que foi preciso o recurso astucioso ao Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (CPLP, São Tomé, 25 de Julho de 2004) - onde surpreendentemente se afirma “ser o Acordo Ortográfico um dos fundamentos da Comunidade”, e que permite que três países decidam da ortografia da língua que oito partilham - para que este Acordo pudesse entrar em vigor…
Para concluir esta breve evocação de alguns aspectos importantes do historial do assunto em apreço, permito-me citar o último parágrafo duma análise da questão ortográfica, da autoria de um Professor brasileiro da Universidade de São Paulo:
«Assim, pode-se dizer que grande parte da discussão em torno da ortografia da língua portuguesa – como, de resto, em torno da própria língua – redunda na tentativa de afirmação nacionalista de uma vertente brasileira do idioma, em franca oposição à vertente lusitana.» (in Reforma Ortográfica e nacionalismo lingüístico no Brasil, Maurício Silva (USP): www.filologia.org.br/revista/.../5(15)58-67.html).
A discussão científica, séria e aberta que esta importante questão requer tem vindo a ser negada ao povo português, a quem o Acordo Ortográfico de 1990 está a ser imposto pelo Estado como algo de inelutável e de definitivo, “facto consumado”, nomeadamente com o apoio escandaloso da RTP, serviço público com responsabilidades acrescidas na defesa do nosso património cultural e linguístico, junto da população residente e das nossas comunidades espalhadas pelo mundo.
Mas é o caso do Ministério da Educação o que mais me preocupa, por isso me dirijo muito especialmente ao novo Ministro do sector, em quem deposito uma imensa confiança, pelo que conheço das suas ideias e valores, expressos na obra O ‘Eduquês’ em Discurso Directo – Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista.
A decisão do governo anterior, consubstanciada na Resolução n.º 8/2011, de 9 de Dezembro de 2010, estipulando a entrada em vigor do Acordo no sistema de ensino, no próximo ano lectivo, veio confirmar os meus piores receios. É mesmo o caos sem regresso que se pretende instaurar, é a desautorização definitiva da ortografia da nossa língua que se quer promover junto da juventude do nosso país!
Sintomáticos deste desnorte previsível são já, a meu ver, alguns aspectos inéditos das instruções produzidas pelo GAVE desde há algum tempo e que fazem crer que o Ministério da Educação, que deveria primar pelo rigor, pela integridade e pela transparência, vem perigosamente falando a duas vozes, discordantes. Vejamos alguns exemplos da incompreensível antecipação do GAVE, e de algumas escolas, relativamente à Resolução n.º 8/2011 (D.R., 1.ªsérie – N.º17 – 25 de Janeiro de. 2011) atrás referida:
• Exames de 2010 – Prova Escrita de Português – 12º Ano de Escolaridade;
Prova 639/1ª Fase:
“Critérios Gerais de Classificação”: 7º parágrafo:
“Havendo escolas em que os alunos já contactam com as novas regras ortográficas, uma vez que o Acordo Ortográfico de 1990 já foi ratificado e dado que qualquer cidadão, nesta fase de transição, pode optar pela ortografia prevista quer no Acordo de 1945, quer no de 1990, são consideradas correctas, na classificação das provas de exame nacional, as grafias que seguirem o que se encontra previsto em qualquer um destes normativos.”
• Informação n.º 01.11 – Data: 2010.11.08
Prova de Exame Nacional de Língua Portuguesa – Prova 22/2011 – 3º Ciclo do Ensino Básico:
Ponto 4. Critérios de classificação - o parágrafo precedente aparece aqui em 4.º lugar.
• Ainda um exemplo que copiei directamente do GAVE (o destaque é meu):
“Acordo Ortográfico – Informação 2011 – 2 de Abril de 2011:
«Acordo Ortográfico - Informação 2011
2 de Abr de 2011
Informação sobre as implicações do Acordo Ortográfico no processo de codificação das provas de aferição e na classificação das provas de exame nacional
O Acordo Ortográfico de 1990 foi ratificado por Portugal em 2008, prevendo-se uma moratória de seis anos para a sua entrada plena em vigor. O Ministério da Educação estabeleceu como data para entrada em vigor do Acordo Ortográfico, nas escolas, o início do ano lectivo 2011-2012.
Havendo escolas em que os alunos já contactam com as novas regras ortográficas, uma vez que o Acordo já foi ratificado e dado que qualquer cidadão, nesta fase de transição, pode optar pela ortografia prevista quer no Acordo de 1945, quer no de 1990, são consideradas correctas, na codificação das provas de aferição e na classificação das provas de exame nacional, as grafias que seguirem o que se encontra previsto em qualquer um destes normativos.
Para esclarecimento de dúvidas relativas à nova ortografia, deve ser consultado o Portal da Língua Portuguesa, www.portaldalinguaportuguesa.org , que disponibiliza o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) e o conversor Lince como ferramenta de conversão ortográfica de texto para a nova grafia.»
Observações:
1. - É incorrecta a afirmação destacada no 1.º parágrafo, podendo induzir o público em erro.
1.1. - O A.O. de 1990 foi:
– a) assinado em Lisboa em 16 de Dezembro de 1990, pelos representantes dos países de língua portuguesa (à excepção de Timor-Leste);
- b) aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91, em 4 de Junho de 1991;
- c) ratificado pelo Dec. do Presidente da República n.º 43/91, de 23 de Agosto, assinado em 4 de Agosto de 1991 e referendado em 7 de Agosto pelo Ministro da Presidência.
( in D.R. – I Série – A - N.º 193 – 23-8-1991)
- d) rectificado pela Assembleia da República - Rectificação n.º 19/91, de 15 de Outubro de 1991, no tocante a várias “inexactidões” entretanto detectadas no Anexo II, designadamente no “ponto 8”, cujo título foi modificado e a que se acrescentou um “terceiro parágrafo”.
( in D.R. – I Série A – N.º 256 – 7-11-1991)
1.2. – Em 2008:
- a) a Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 16 de Maio, “Aprova o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, adoptado na V Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada em 26 e 27 de Julho de 2004.” (O “Acordo do Segundo Protocolo Modificativo” está publicado em anexo).
- b) No ponto 2 do Artigo 2.º desta Resolução da A. R. diz-se:
“No prazo limite de seis anos após o depósito do instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo (…) a ortografia constante de novos actos, normas (…) deve conformar-se às disposições do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.”
- c) o Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, de 29 de Julho, assinado em 21 de Julho, e referendado em 22 de Julho, ratifica o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
(in D.R., 1.ª série – N.º 145 – 29 de Julho de 2008)
1.3. – Data do “depósito do instrumento de ratificação” do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa:
- a) o Aviso n.º 255/2010, do Ministério dos Negócios Estrangeiros diz explicitamente: “O depósito do respectivo instrumento de ratificação foi efectuado em 13 de Maio 2009, tendo o referido Acordo entrado em vigor para Portugal nesta data.”
N.B.: Este Aviso tem data de 13 de Setembro de 2010 e foi publicado no D.R., 1.ª série – N.º 182 – 17 de Setembro de 2010.
- b) Na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, sob a presidência do Primeiro-Ministro José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, com data de 9 de Dezembro de 2010, pode ler-se no 11.º parágrafo:
“Assim, e nos termos do Aviso n.º 255/2010, de 13 de Setembro, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 17 de Setembro de 2010, o Acordo Ortográfico já se encontra em vigor na ordem jurídica interna desde 13 de Maio de 2009.”
(in D.R., 1.ª série N.º 17 – 25 de Janeiro de 2011)
2. De novo, no parágrafo destacado, a referência a escolas que já estarão a aplicar o Acordo de 1990, com a justificação de que “o Acordo já foi ratificado” e “qualquer cidadão, nesta fase de transição, pode optar”… Tendo em conta o que já salientei das datas dos documentos envolvidos e da ausência da discussão e debate imprescindíveis, envolvendo escolas e famílias, é lícito perguntar: é assim que o Ministério da Educação entende ser o garante fiel da estabilidade, da transparência e do rigor que devem marcar a sua actuação, dado que tem nas suas mãos a formação das novas gerações?
No “Público” de sábado passado, 25 de Junho, foi publicada uma “Carta aberta” a VV. EE., que inteiramente subscrevo e agradeço. Este é o meu simples contributo para a mesma causa, com um último apelo: os compromissos desonrosos, é uma honra e um dever não os respeitar. A nossa língua merece e agradece!
Com os meus respeitosos cumprimentos,
Maria José Abranches Gonçalves dos Santos
P.S.: Reservo-me o direito de divulgar esta minha missiva, pelos meios ao meu alcance.