Caros colegas,
No seguimento da minha carta de 13 de Outubro último, que suponho tenham recebido, e tendo entretanto lido o “Jornal da FENPROF” n.º 254, de Outubro 2011, permito-me fazer mais algumas observações.
Logo no verso da capa do jornal, aparece um “Esclarecimento sobre a aplicação do acordo ortográfico” [ver recorte] conta da decisão tomada pelo JF nesta matéria:
“i) manter a ortografia antiga para todos os textos assinados que assim nos sejam enviados; ii) adoptar a ortografia aprovada pelo AO para os autores que assim o pretendam; iii) adoptar o AO para os textos não assinados.”
Quanto aos dois primeiros pontos, nada tenho a dizer, excepto que a “ortografia antiga” (já agora, porque não “arcaica”?) continua actual e em vigor, paralelamente à “ortografia moderna” (é a “moda” que comanda a vida, neste país!): segundo a Resolução da Assembleia da República, n.º 35/2008, há seis anos de transição para a aplicação do AO, a contar do depósito do instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, o que ocorreu a 13 de Maio de 2009 (Aviso n.º 255/2010, ME).
Quanto ao terceiro ponto, e tendo em conta os seis anos atrás referidos, pergunto: por que razão se apressa a FENPROF a aplicar o AO? Os sindicatos dos professores, tanto quanto sei, não fazem parte do “Governo” nem dos “serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo”, que deverão aplicar o AO, segundo a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, a partir de Janeiro de 2012. Daqui decorre ainda que, contrariamente ao que se afirma no “Esclarecimento…”, esta não é por enquanto a ortografia obrigatória nos “textos oficiais”. É verdade que também o actual governo, no Relatório do OE 2012 aplica antecipadamente o AO: estranha coincidência! Como explica a FENPROF este proselitismo?
No pequeno texto acima referido, diz-se também que a FENPROF continua, “obviamente, a acompanhar, com interesse, o debate sobre esta matéria, aguardando serenamente pelo resultado da Iniciativa Livre (?) de Cidadãos junto da Assembleia da República”.
Antes de mais, queiram, por favor, corrigir o lapso: trata-se de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico (Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho, D.R. N.º 129 – I Série-A, pp. 3349), um exercício de cidadania corajoso, consciente e responsável, que nos interpela a todos e requer a nossa participação individual. Quanto ao resto da citação, não compreendo a postura de mero espectador assumida aqui pela FENPROF! “Debate” deveria haver, mas quase não há, porque o poder, político e económico (alguns media, designadamente a RTP e algumas editoras) silenciou os que reprovam este AO, pondo a circular uns estereótipos absurdos, para “inglês ver” e repetir: “as línguas evoluem”, “não somos donos da língua”, só os “velhos do Restelo” se opõem (entenda-se: conservadores, antiquados, retrógrados, imobilistas, etc. …)!
Mas o que mais me indigna é que os que têm obrigação de fomentar a discussão aberta e informada, como os professores, se calem e se curvem! O que fez a FENPROF até agora, como a meu ver lhe competia, para promover a informação, a análise e a troca de opiniões que a gravidade deste assunto exige? Há discordâncias entre os responsáveis? Pois seria muito positivo que esse confronto de posições e ideias fosse aberto e alargado à comunidade educativa, para maior esclarecimento e participação de todos nós! Porque a democracia é essencialmente isso: a possibilidade de os cidadãos debaterem abertamente os seus pontos de vista, forçosamente diferentes, de modo a encontrar os consensos possíveis, no respeito pela dignidade de cada um e da comunidade a que pertencem.
Estes apelos que venho repetidamente fazendo à “principal organização sindical de docentes” (M.N.), fi-los também, logo em 2008, à Associação de Professores de Português (APP), que contactei a 9 de Junho, por e-mail, e a quem manifestei a minha viva preocupação, tendo-lhe mandado o meu pequeno estudo “O Novo Acordo Ortográfico, Contributo para uma reflexão necessária”, o mesmo que aliás já enviara à FENPROF.
Recebi esta resposta da APP, a 18.06.2008:
“Cara colega,
Acusamos a recepção da sua mensagem, que agradecemos. Para mais informamos que a Direcção não tomou publicamente uma posição sobre a matéria por se verificar um empate técnico entre os que são violentamente contra e os que são veementemente a favor.
Tendo verificado que não é nossa sócia, aproveitamos a ocasião para lhe enviar em anexo alguma informação acerca da nossa actividade.
Atenciosamente,
A Dir. APP”
Da segunda e última mensagem que então enviei à APP, com data de 26.06.2008, e que ficou sem resposta, destaco:
“Em segundo lugar, esperava que nesta questão, vital para a nossa língua, mais do que ser “violentamente” contra ou “veementemente” a favor, a APP contribuísse objectivamente para a reflexão séria e o esclarecimento aprofundado que a situação exige e de que os professores de Português necessitam.”
Continuo a acreditar que fugir à discussão inerente às questões controversas é prestar um mau serviço à causa da democracia. E é também abrir caminho ao obscurantismo e a todas as prepotências!
Quero ainda salientar um dos aspectos mais nefastos da aplicação em curso deste AO, no ensino: nós, professores, estamos de facto a contribuir para a instauração da confusão generalizada no domínio da ortografia, e a prazo também da própria pronúncia, da nossa língua materna. E isto num país caracterizado por um analfabetismo crónico que, penosamente e com grandes custos financeiros, se tinha vindo a combater nas últimas décadas!
Para terminar, recordo que têm sido notícia, de novo, nos últimos dias, os cortes que o ensino do Português no estrangeiro vai sofrer, devido à contenção orçamental, havendo já largas centenas de alunos sem aulas, por falta de professores. Estas restrições prejudicam sobretudo as comunidades portuguesas residentes no estrangeiro, a quem se retira assim um direito que a nossa Constituição lhes reconhece. O Estado costuma lembrar-se dos emigrantes, quando precisa de dinheiro e de votos, mas empenha-se muito pouco na promoção da dignidade da sua qualidade de cidadãos portugueses, conhecedores da sua língua, da sua história e da sua cultura! Para isto não há dinheiro, porque os nossos responsáveis políticos entendem que a emigração não dá “prestígio internacional”!
Mas há dinheiro do Estado – e não deve ser pouco – para promover o Acordo Ortográfico, apresentado como “um dos fundamentos da Comunidade”(CPLP), e o instrumento incontornável da tão ambicionada “internacionalização” da língua portuguesa (previsivelmente na sua versão “português.br”). Ao serviço desta causa está o Fundo da Língua Portuguesa e as mais variadas iniciativas e diligências do MNE, do Instituto Camões, da Secretaria de Estado da Cultura, do MEC, da RTP, etc. … Um bom exemplo: esse acontecimento editorial que dá pelo nome de “Coleção klássicos”, larga e ricamente publicitado um pouco por toda a parte!…
“Quem não se sente não é filho de boa gente”, diz o ditado: por isso insisto na necessidade de defendermos com convicção a dignidade da nossa língua materna, que esses Clássicos, agora tão maltratados, nos deixaram e pela qual somos responsáveis perante as gerações futuras!
As minhas melhores saudações,
Lagos, 16 de Novembro de 2011
Maria José Abranches Gonçalves dos Santos