Pare! E pense que está em causa a nossa língua materna, isto é, o próprio cerne da nossa identidade como povo europeu, com uma História e uma cultura forjadas ao longo dos séculos.
O português, uma das línguas românicas da Europa, derivadas do latim que o Império Romano trouxe às regiões que estiveram sob o seu domínio, surgiu e desenvolveu-se, acompanhando a história da formação do reino de Portugal, cujo território se estendeu até ao Algarve, com D. Afonso III, em 1249.
É pelo léxico que a língua portuguesa começa a afirmar-se, por volta do século VI, datando de 1214-1216 os dois primeiros textos escritos em português.
Entretanto a língua afirma-se, estando o essencial da sua evolução terminada, do ponto de vista fonético, por meados do século XVI. A primeira gramática da nossa língua data de 1536, cabendo aos gramáticos, dicionaristas e escritores, ao longo dos séculos XVII e XVIII, um papel preponderante na fixação da língua-padrão. Infelizmente, a nossa Academia das Ciências, fundada no século XVIII, nunca teve, contrariamente às suas congéneres europeias, o papel determinante que lhe competia, na defesa e ilustração da língua portuguesa.
A partir da conquista de Ceuta, em 1415, Portugal sai do espaço europeu e lança-se na longa epopeia dos Descobrimentos, que espalhará o português pelos vários continentes. Desta extraordinária aventura resultou a “internacionalização” da língua portuguesa, que ainda hoje perdura, como língua materna, em Portugal e no Brasil e como língua oficial em Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Timor-Leste, os países da CPLP, e também em Macau. Falta ainda acrescentar as importantes comunidades de emigrantes disseminadas pelo vasto mundo e algumas bolsas de pequenos grupos sociais que resistem, como se verifica em Goa, por exemplo.
Em todos estes países e regiões, com excepção do Brasil — que tem a sua própria norma da língua portuguesa, e que assumiu desde 1907 o direito de a ortografar como muito bem entende — a norma-padrão adoptada como referência foi sempre a do português europeu, estando em vigor, no essencial, a ortografia consagrada pelo Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 1945, que o Brasil, como sempre tem feito, não respeitou, mantendo-se fiel ao seu “Formulário Ortográfico” de 1943.
O Acordo Ortográfico de 1990, ressuscitado pela CPLP em 2004, mediante o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo (aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.o 35/2008), que permite que apenas três países, dos oito, possam determinar a sua entrada em vigor, está em vias de subverter totalmente esta situação, que tem raízes históricas evidentes e irrefutáveis. De qualquer modo, somos todos povos soberanos e independentes e cabe a cada um de nós escolher o seu destino, cabendo-nos a nós decidir do nosso!
Escute! E ouça as diferenças existentes entre a nossa língua materna e a língua materna dos brasileiros: elas correspondem a dois percursos evolutivos progressivamente divergentes, no que toca essencialmente ao vocabulário, à sintaxe, ao ritmo e sobretudo à pronúncia, aliás marcada no Brasil por alguns arcaísmos. E note-se que, se nós entendemos facilmente os brasileiros (veja-se o sucesso das suas telenovelas entre nós), a série portuguesa Equador foi submetida a dobragem, no Brasil, conforme noticiado recentemente, o que é significativo!
Trata-se de facto de dois sistemas vocálicos inconfundíveis, até porque, na pronúncia-padrão brasileira, não há vogais pretónicas reduzidas, contrariamente ao que acontece na nossa pronúncia-padrão. Ora, e isto para falar do caso mais emblemático deste Acordo, a Base IV, foi em nome da adequação da ortografia à sua pronúncia que o Brasil, pelo menos desde 1943, deixou cair as consoantes etimológicas, ditas “mudas”, que nós mantivemos, justamente pela necessidade de assim indicar a abertura das tais vogais pretónicas (ex: lectivo, colecção, adopção) e ainda por uma questão de coerência entre palavras da mesma família ou flexão (ex: Egipto, egípcio, egiptólogo). É pois evidente que não faz qualquer sentido invocar a este propósito o critério da pronúncia, como se faz neste Acordo, para exigir a supressão dessas consoantes na ortografia portuguesa, onde elas são, como já se viu, indispensáveis!
Olhe! E veja a confusão e a verdadeira devastação que este Acordo está já a provocar em Portugal! Agora ninguém se sente seguro da sua ortografia! Os pais dizem-se incapazes de ajudar os filhos nos trabalhos escolares! Ver a RTP ou ler alguns jornais, revistas ou livros tornou-se impossível para quem não suporta esta caricatura da nossa língua! O Estado português, com o dinheiro dos contribuintes, está empenhado em destruir o longo e dispendioso esforço de alfabetização dos portugueses, levado a cabo nas últimas décadas e assente numa ortografia da nossa língua claramente estabelecida e consolidada, a partir do já referido Acordo Luso-Brasileiro de 1945!
É o futuro da língua materna dos portugueses e de Portugal que está em perigo, entre nós e no mundo. Como queremos defender a nossa língua lá fora, se aceitamos maltratá-la e destruí-la no nosso próprio país, para servir interesses políticos e económicos que não são os nossos?
Ainda estamos a tempo de salvar a nossa língua materna! Subscrevamos a Iniciativa Legislativa de Cidadãos (http://ilcao.cedilha.net/) para a Revogação da Resolução da Assembleia da República nº 35/2008!
Maria José Abranches
Professora de Português/Francês
Artigo da autoria de Maria José Abranches publicado na edição de hoje, 27.12.11., no jornal Público de 27.12.11, página 31. [LINK]