Este acto leviano foi perpetrado a três tempos, cada um deles acrescentando estupidez à estupidez do anterior: primeiro houve o tempo zero, que foi aquele em que dois ou três ditos linguistas pariram a ideia (que, essa sim, deveria ter sido objecto de aborto higiénico) de que a Língua Portuguesa, na sua vertente ortográfica, é uma coisa que se pode mudar de acordo com as modas, como se fosse uma cirurgia estética do tipo Lili Caneças.
Foi a estupidez originária.
Veio de seguida o momento em que o Estado Português aprovou o produto das ditas parideiras de ortografia, sem discussão nem auscultação dos profissionais e investigadores do sector – como se fosse competência do Estado actual mexer com a Língua Portuguesa que já existe, documentada, desde o século VIII (estamos, como se sabe, no século XXI).
Foi o primeiro momento, o da consagração da estupidez.
Seguiu-se o momento em que o Estado Português tentou vender a sua banha-da-cobra ortográfica aos restantes sete países lusófonos, tendo ficado definido que a mesma só produziria efeitos depois de ser comprada por todos. Ou seja, se houvesse unanimidade. Mas como nem Angola nem Moçambique se deixaram ir na cantiga – eles lá têm problemas muito mais importantes com que se preocupar… –, não existindo assim unanimidade, os tontos que decidiram sobre esta matéria em nome do Estado português lá se meteram noutra: assinaram uma alteração ao tratado inicial em que, em vez da unanimidade, bastaria a assinatura de pelo menos três dos oitos países de língua portuguesa para que o famigerado Acordo pudesse entrar em vigor.
Foi o segundo momento, o da estupidez-tanto-faz.
Chegou agora o momento em que o Estado Português decretou que a partir do passado dia 1 de Janeiro toda a gente – bem, o próprio Estado e seus servidores obedientes – passasse a escrever a Língua Portuguesa não de acordo com o que mais de mil anos de história foram apurando, mas sim de acordo com o que o clube de senis que é a Academia das Ciências de Lisboa resolveu fazer entre duas partidas de sueca – relativamente ao qual apenas existe um único parecer favorável: o da própria Academia das Ciências de Lisboa, assinado pelo obscuro linguista que foi o seu autor.
Foi o terceiro momento, o do Reino da Estupidez (expressão que peço emprestada ao grande Jorge de Sena).
Como cidadão, e como linguista e professor que se ocupa da História da Língua Portuguesa, e porque entendo que – primeiro – o Acordo Ortográfico é um chorrilho de asneiras desnecessárias e inúteis, e que – segundo – não compete ao Estado decidir como é que eu devo escrever a língua que herdei dos meus antepassados (e que escrevo tal como a Sr.ª D. Graziela me ensinou na escola primária da Serreta), do mesmo modo que não compete ao Estado decidir que remédio deverei eu utilizar para as dores nas costas (competência que apenas reconheço ao meu médico), declaro aqui solenemente que me recuso a escrever o Português à maneira atoleimada e anti-histórica que me tentaram impor.
Este é, até ao momento, o meu único acto de desobediência civil.
Mas é consciente.
par Luiz Fagundes Duarte, samedi 7 janvier 2012, 10:30
(Na edição de hoje do Açoriano Oriental, de Ponta Delgada, e na de amanhã do diXL, de Angra do Heroísmo)