« Acuso ! »
Ex.mos
Senhores Deputados,
“… melhor
é duvidar que sandiamente determinar.” (D. Duarte, O Leal
Conselheiro)
Começo
por agradecer: ao grupo parlamentar do PCP, pela iniciativa
de propor na Comissão de Educação, Ciência e Cultura, a criação
de um grupo de trabalho para reflectir sobre o Acordo Ortográfico de
1990 (AO90);
à referida Comissão
e ao seu Presidente,
pela aceitação unânime desta proposta; ao Grupo
de Trabalho pela
sua disponibilidade para esta missão.
Mais
vale tarde do que nunca, diz o ditado! Efectivamente este debate já
devia ter acontecido há muito, se o poder político estivesse atento
ao sentir da população que representa e que maioritariamente
considera este
AO90 como
um ultraje e uma expropriação de um bem patrimonial e identitário
que dá sentido à sua vida. Porque é infelizmente preciso lembrar
que somos um povo com História e língua próprias, um país
constitucionalmente democrático, e que a democracia é um projecto
permanentemente em construção, aberto, responsável e transparente,
pelo que não se esgota no acto eleitoral, e muito menos nos
objectivos secretos dos partidos.
Neste
preciso momento, estamos todos a escrever uma página decisiva e
indelével da História do nosso país. O que está em causa é a
língua de Portugal, a língua materna dos portugueses, que aqui
surgiu, que nós herdámos e que vem de longe, fruto das vivências e
dos saberes dos nossos antepassados, e que temos a obrigação
inalienável de transmitir aos vindouros, preservada na sua
integridade que nos estrutura, embora enriquecida com a nossa
experiência da vida e do mundo.
Dizem
os defensores do AO90 que não é a língua que este pretende
alterar, como se a ortografia fosse a mera transcrição fonética da
língua oral ou uma simples roupagem insignificante e “modernizável”
ad libitum. Ora a ortografia é parte integrante do corpo visível e
significante da palavra, moldado ao longo dos tempos, num permanente
compromisso entre a preservação das suas raízes e o normal e lento
evoluir da própria língua. Ao destruir as raízes etimológicas do
Português europeu, o AO90 retira-lhe carácter, historicidade e
inteligibilidade, afastando-o também das outras línguas europeias,
menos sujeitas a “modas” intempestivas. Por outro lado, as
deturpações fonéticas e as confusões ortográficas que o AO90,
como era de prever, viria provocar, já hoje são largamente
evidentes, basta observar o caos generalizado que a sua aplicação
está a instalar.
Não
vou desenvolver estes aspectos propriamente linguísticos, sobre os
quais os nossos melhores especialistas já amplamente se
pronunciaram. Pessoalmente conheço o AO90 e muito do que sobre ele
foi dito e escrito, o que infelizmente parece não ser o caso dos
nossos decisores políticos.
Posto
isto, será útil salientar que o indevidamente designado “acordo”
ortográfico corresponde de facto, pela sua dimensão e
consequências, a uma profunda “reforma” da ortografia do
Português europeu, que é também, com algumas variantes, a língua
oficial dos PALOP e de Timor e Macau, assim como de vastas
comunidades de emigrantes e descendentes de portugueses, espalhadas
pelo mundo. Esta “reforma”, considerada (por quem?) “um passo
importante para a defesa da unidade da língua portuguesa e para o
seu prestígio internacional”, e fabricada a pretexto de uma
desnecessária e impossível “unificação” da ortografia
portuguesa e brasileira – afastadas desde 1907, aquando da primeira
reforma ortográfica levada a cabo unilateralmente pela Academia
Brasileira de Letras –
foi elaborada sem a participação dos especialistas e desprezando os
seus pareceres, e ainda por cima negociada à revelia do povo
português, por todos aqueles que, eleitos por nós, ocuparam e
ocupam o poder desde 1990.
Concluindo:
Acuso
o poder político nacional de se ter arrogado o direito, que lhe não
pertence, de alterar a ortografia da nossa língua materna, pelo
AO90, e de o ter feito negociando na sombra, sem discussão pública
e sem que este assunto fosse sequer abordado aquando das inúmeras
eleições – presidenciais, legislativas e autárquicas -que
ocorreram desde 1990 até hoje.
Acuso
o poder político de ter aceitado as condições vergonhosas do
Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico de 1990, que
veio permitir que três países, dos oito da CPLP, pudessem decidir
da língua que é pertença de todos.
Acuso a
Assembleia da República de ter depois aprovado esse
vergonhoso Segundo
Protocolo,
criando ao mesmo tempo as condições para a entrada em vigor do AO90
em Portugal (Resolução
n.º35/2008).
Acuso
o Governo anterior, pela pressa com que decidiu implementar a
aplicação do AO90, no Ensino, na Administração Pública e no
Diário da República (Resolução
do Conselho de Ministros n.º 8/2011).
E também na RTP que, ostensiva e continuadamente, sem respeito pela
sua missão nem pelos espectadores, vem adoptando, “ensinando” e
promovendo a nova confusão ortográfica.
Acuso
o Governo actual por ter mantido e incrementado todas as decisões do
Governo anterior, quando teve todas as oportunidades e justificações
para o não fazer, ferindo assim de morte a ainda frágil
alfabetização dos portugueses levada a cabo nas últimas décadas.
Acuso
a insensibilidade dos políticos em geral e da Assembleia da
República em particular, por até agora terem mantido este assunto
tabu, apesar dos múltiplos sinais do desastre e desagregação para
a nossa língua que este AO90 representa, inclusivamente a nível
social, pela fractura intergeracional que cria no seio das famílias,
e ainda a nível internacional, pelo progressivo apagamento do
português.pt, a favor do português.br.
Estou
em guerra contra o AO90 desde que o conheço. Assinei em tempos a
“Petição/Manifesto em defesa da língua portuguesa”, a que a
Assembleia da República achou por bem não dar seguimento. Subscrevi
a Iniciativa
Legislativa de Cidadãos contra
o Acordo Ortográfico em cuja luta participo por todos os meios ao
meu alcance, inclusivamente escrevendo textos, como este que acabo de
endereçar aos Senhores Deputados do Grupo de Trabalho sobre o AO90,
esperando que ouçam mais esta voz da sociedade civil, muito
empenhada na defesa da nossa língua materna.
Com
os meus respeitosos cumprimentos,
Maria
José Abranches Gonçalves dos Santos
Lagos