«A AR recusou, mais uma vez, rever a entrada em vigor do Acordo
Ortográfico, escudando-se, em contrapartida, atrás de uma vaga resolução
de efeito útil nulo. Já passou pela mão de todos os deputados e
governantes uma lista impressionante de nomes de escritores,
professores, académicos ou jornalistas – os que usam a língua
profissionalmente – que não deixa qualquer dúvida de que apenas uma
minoria, e já sem quaisquer argumentos válidos, continua a sustentar
este crime. É como se, à revelia de médicos, Governo e deputados entendessem regulamentar as condições técnicas do exercício da medicina.
Mas a língua é ainda mais do que o instrumento de trabalho de quem
escreve profissionalmente, pois é também um factor de unidade e
identidade nacionais determinante. Há, pois, qualquer coisa de
misterioso e estranho por trás da teimosia de governantes e deputados,
de todos os partidos, em não ceder aos constantes apelos que de todos os
lados recebem. Mais estranho ainda é nem sequer se darem ao trabalho de
explicar quais as ponderosas razões de Estado que os levam a vender a
língua que é a nossa. Como se isso não fosse importante. Ou como se não
devessem qualquer explicação aos portugueses, mesmo depois de verem
países como Angola, Brasil e Moçambique resistirem ao AO. É nestas
alturas, e como último recurso, que eu gostava de ter um Presidente da
República que, no uso da sua função de garante da independência nacional
(de que a preservação da língua é parte indissociável), puxasse do
artigo 120º da Constituição e matasse de vez esta vergonha. Mas,
infelizmente, também não é o caso.»
Miguel Sousa Tavares, Expresso, 01/03/2014